28 de outubro de 2008

Autocríptica



Num interstício entre qualquer quando e incerto onde, sem depois do que sonhara ali se lembrar, ele acordou sexagenário. Salivado desde o pélago onírico, consubstanciado ainda na roupa do leito. Acordado de acordo com os berros de repente senis. Por sessenta e um segundos imprecisos conservou-se taciturno sobre a cama cuspida pelo corpo. O seu esquelético corpo ordinário, sem rabo, sem asas, sem patas. Asquerosamente. Monstruosamente. Humano.

De pé, trovoado com ímpeto ao solo, esquadrinhou a janela por fissuras, inutilmente. O quarto estava três quartos sujo, a era suja do quarto. Todo um mundo imundo como uma curva de rio, como a memória, igual aos seus planos. Quis entregar-se novamente ao regaço do sono, o que teria conseguido não fossem os ecos daqueles gritos, nos outros cômodos da casa. Tampou os ouvidos com seus dois dedos de lêmure, com os quais não fez senão cutucar os vermes cerebrinos. Girando em círculos, perdeu-se no espaço tão pequeno, de dó dar. Em debalde procurou cama e comprimidos. Caçou o penico. Perseguiu os livros e o espelho. Nada. Nem as paredes, nem o teto, nem mesmo o chão. Peão naufragado no eixo da realidade, extraviado do resto, menos de si. E por isso mesmo, mais perdido! Ele percebeu que seu próprio sangue perigava inumá-lo e tentou se mover, o que não fez por pura púrpura abulia. Então, perpendiculou-se.

Procurou um canto para se sentar, para sessentar. Sentou-se sobre o carcinoma do seu cu violentado e, balançando-se nele, para frente e para trás, como se, respectiva a mente ora planejasse o passado, ora lembrasse o futuro, semeou nos lábios os caninos, para não sorrir. Logo rebentaram as tulipas liquefeitas de seu olho mais esquerdo, lavrado de terçóis. Não é que algo tenha doído, tinha do voltado.

Ele germinou três lírios, um em cada extremidade fértil de sua boca telúrica. Seus olhos de novo serenaram em cataratas gélidas de orvalho e breu, o que principiou a se precipitar. Quando reumaticamente suas mãos verruguentas transfiguravam-se circenses numa rede de amparo a salvar cadáveres esquisitos, os do seu semblante, de pele cambiante com as estações. Trapezistas que caiam para se misturar na rede, por vezes mesclando-se uns com os outros antes mesmo de chegarem, como que por pressa. Uma vez no bojo da trama de linhas da cabeça, do coração, da vida, reciclavam-se os cílios em ciclos, que a debandar se vão pêlos furos, ampulhetados.

Permaneceu inerte até não suportar a visão da morte, defronte da dictiopsia dos olhos. Moveu-se como a aranha que acaba de sair do ventre, a deixar um rastro de reflexos diluído. Seguiu até aquilo que estranhamente lhe pareceu ser uma porta, sem fechadura, maçaneta, nem nenhuma fissura. Reconheceu-se nessa porta hermética agora novamente tão familiar, era a mesma eterna porta tão fechada que com portas teve nunca nada em comum. Ele se diria mesmo que se tratava não de porta, mas de uma extensão da parede, ou a própria parede. E a janela, da mesmíssima forma, existia tão somente em sua alma de homem. Apenas ele podia ouvir seus próprios gritos lá fora.

por Romiéri

& Aleph Davis